A jurimetria pode incidir nestes tantos campos que, hoje, não recebem muita atenção. Este texto busca ampliar os horizontes das pesquisas em jurimetria para além dos tribunais.
Normalmente, quando ouvimos falar em jurimetria, associamos este conjunto de métodos e práticas a análises quantitativas dos tribunais judiciais. Entretanto, pela própria origem etimológica da palavra, vemos que a jurimetria é um fenômeno mais amplo do que o litígio: ela trata do fenômeno do juris, isto é, daquilo que é jurídico. E o fenômeno jurídico em muito supera o fenômeno litigioso.
A cada pegada que o direito deixa (contratos, processos administrativos, atos administrativos, decretos, registros), há um campo imenso para ser pesquisado. A jurimetria, então, pode incidir nestes tantos campos que, hoje, não recebem muita atenção. Este texto busca ampliar os horizontes das pesquisas em jurimetria para além dos tribunais.
O que já está razoavelmente bem consolidado na área é a pesquisa de jurimetria em tribunais. Já avançamos e aprendemos muito sobre como tratar dados de processos judiciais.
Em termos práticos, começamos essas análises desbravando a mata dos tribunais criando robôs que extraíam os dados dos processos do site dos tribunais. Hoje, já estamos um passo mais à frente, pois, graças ao Conselho Nacional de Justiça, temos uma forma mais eficiente de listar os vários processos que tramitam em todos os tribunais do país por meio do Datajud.
Em termos metodológicos, hoje já compreendemos alguns problemas que os dados de processos trazem. Sabemos do problema das cifras ocultas nas Classes e nos Assuntos. Sabemos como manejar as Tabelas Processuais Unificadas (TPUs). Sabemos quais são as melhores práticas para calcular o tempo dos processos, sem subestimar as estimativas.
Com esse conhecimento sedimentado, muitas pesquisas foram realizadas, não só pela ABJ, mas por muitos pesquisadores individuais que, semanalmente, entram em contato com a associação para conversar sobre suas pesquisas, bem como por muitas instituições de pesquisa.
A maior parte das pesquisas realizadas até aqui foram feitas utilizando-se de dados de tribunais, para pesquisar fenômenos que acontecem dentro das paredes do Judiciário. Mas, como já dissemos, o fenômeno jurídico é muito maior do que isso. E, na verdade, o direito que incide na vida de todas as pessoas diariamente não é o direito do litígio, mas sim, atos jurídicos simples que acontecem constantemente na vida de todos.
Prédios são erguidos porque obtiveram da Prefeitura um alvará de construção; lojas, restaurantes, bares estão em funcionamento porque receberam um alvará de funcionamento também; grandes eventos fecham as ruas das cidades todos os meses porque foram autorizados pela autoridade competente. Compramos comida diariamente, realizando contratos de compra e venda; compramos carros e passagens de avião, ou um simples chiclete ou um misto quente por causa desse contrato civil. Tomamos banho por causa de uma concessão realizada entre o Estado e uma concessionária que trata a água que utilizamos todos os dias. Vemos televisão e ouvimos ao rádio porque a União e alguns Estados possuem contratos de concessão da emissão de rádio e TV no país. Hoje podemos fazer PIX porque o Banco Central regulou esta matéria. E produtos chegam da China até o Brasil por causa de contratos privados, a regulação pública sobre exportações, e regras de comércio internacional.
Esses infinitos alvarás que as Prefeituras do país inteiro estão emitindo podem se tornar dados, assim como os processos judiciais se tornaram dados, se quisermos analisar, quantitativamente, a intervenção do Estado na propriedade privada. Os vários contratos do dia a dia de compra e venda podem se tornar dados para analisarmos contratos civis (a dificuldade aqui seria listar todos os contratos de compra e venda realizados em um período). As concessões de serviço público podem ser vistas como atos passíveis de serem analisados quantitativamente. E até mesmo os contratos de comércio internacional podem ser analisados.
Assim, para além das pesquisas judiciais, podemos olhar para o Direito por meio de atos mais simples. O foco deve sempre ser os atos jurídicos que foram realizados e registrados. Se não há registro, não há como sabermos de sua existência. E se algo não pode ser visto, ele não pode se tornar dado.
Em uma ocasião, já analisamos, não processos judiciais, mas Boletins de Ocorrência, que nada mais são do que um ato jurídico de um órgão da Administração Pública que convencionamos chamar de Polícia Civil.
Além disso, na ABJ, ao invés de olharmos para processos judiciais, já olhamos para processos administrativos. A respeito deste tema, já vimos tanto processos administrativos sancionadores, na CVM, como [processos administrativos tributários] (https://abj.org.br/pesquisas/bid-tributario/) e decisões do CARF.
Por fim, já olhamos também para processos de adoção, que, embora tenham uma faceta judicial (e neste texto estamos procurando análises para além do Judiciário) também se manifestam administrativamente no Conselho Nacional de Justiça.
O que não fizemos ainda? Em verdade, muita coisa.
Várias prefeituras disponibilizam em seus sites, na sessão de Transparência, todos os contratos que ela possui e todos os atos que ela emite (com exceção dos contratos e atos em sigilo). Há uma oportunidade imensa a ser explorada no campo administrativo, pois os institutos de direito público foram pouco explorados do ponto de vista empírico-quantitativo. É possível estudar licitações, alvarás, requisições, desapropriações e muitos outros institutos utilizando métodos quantitativos.
Além do Direito Administrativo, podemos vislumbrar análises quantitativas sobre o Legislativo também. Embora as pesquisas em Ciência Política já olharem para este campo, elas não olham para os atos do Legislativo pela forma como um jurista olharia. Analisar dados quantitativos do processo legislativo por uma ótica jurídica é diferente da ótica de um cientista político.
O mais difícil, talvez, seja pensar na ampliação da jurimetria para os contratos privados. A razão disso é simples: a maior parte destes contratos não são acessíveis. Embora um contrato de compra e venda deixe um registro, que é o comprovante de venda, o recibo, ou mesmo a nota fiscal, esse registro não é público. Contratos de serviço também não são. Não há um local em que todos os contratos devem ser registrados e armazenados. Se um pintor vai realizar um serviço na casa de alguém, o contrato que rege essa relação de prestação de serviço vai ser perdido.
Espero, com estas breves divagações, ter instigado quem estiver lendo. Quantas mais pessoas estiverem pensando sobre estes problemas, mais o conhecimento humano irá avançar e melhores serão as nossas análises sobre o fenômeno jurídico.
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Feliz (2023, July 24). Associação Brasileira de Jurimetria: O Judiciário e além: aplicações da jurimetria. Retrieved from https://lab.abj.org.br/posts/judiciario-aplicacoes-jurimetria/
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